Viajar para ouvir a alma, por Lisi Fabris
A vida é feita de momentos e de distintas fases. Apesar de clichê, nada mais verdadeiro. E assim como a vida muda, precisamos mudar para nos adaptarmos da melhor forma às novas rotinas ou ciclos de vida.
Mas, em meio ao cotidiano, raramente encontramos tempo para refletir sobre nossos sentimentos e projetos de vida. Além disso, nosso cérebro, por realizar ações repetidas todos os dias, não é desafiado a buscar por diferentes caminhos ou soluções, e a criatividade acaba sendo afetada pela rotina.
Então, as viagens surgem como uma opção para observar o novo, desafiar a mente, dar vazão às emoções e, quiçá, ouvir a alma.
Li uma crítica na internet, certa vez, que apontava, de forma pejorativa, as viagens como o “novo Rivotril para os estressados”. Particularmente, prefiro viajar a usar a medicação, mas na afirmação do blogueiro há sim uma verdade, viajar pode alterar completamente seu estado emocional e seu humor. E que seja para melhor!
Por isso, gosto de planejar minhas viagens, estudar os locais para onde vou e, assim, aproveitar ao máximo, com muita economia... Já fiz uma viagem de 33 dias sem planejamento algum e, sinceramente, o estresse do planejamento logístico é muito maior quando não se tem um itinerário definido, além de os custos serem maiores.
Partindo dessa premissa, por um ano planejei minha última viagem, seriam 8 países, 20 cidades, 13 vôos e 468 Km caminhando, tudo em ,44 dias com um objetivo principal: ver a Aurora Boreal!
Para isso, precisaríamos enfrentar o pico do inverno europeu, com temperaturas na casa dos -15ºC. Parece loucura, não é? Pois foi uma das loucuras mais deliciosas que já fiz na vida e que, com muito prazer, compartilho agora com vocês.
Com a parceira de viagem Lenita Palavro, saí do Brasil rumo à Genebra, na Suíça, visitamos as seguintes cidades de Berna, Lausanne, Lucerna, Zurique e Ennetburgen. Esta última, o ponto alto da visita ao país com um dos melhores índices de educação do mundo, porém de custo de vida extremamente caro.
Ennetburgen abriga um dos mais famosos hotéis do mundo, o Hotel Villa Honneg com sua piscina de borda infinita voltada para um vale de natureza exuberante. A procura é tanta, que para frequentar a área da piscina é necessário efetuar reserva com dois anos de antecedência, mas o passeio compensa.
Antes de a viagem seguir pela Suíça, fomos a Chamonix, na França e confesso, que ver o Mont Blanc e subir todos os teleféricos alcançando o pico de Aguille Du Midi, a 3.842 metro de altitude, com seu mirante de vidro, foi o início de minha renovação espiritual, exatamente nesse lugar, passei a ouvir a alma murmurar. O impacto emocional foi grande e, a partir de então, já senti uma vibração diferente no meu humor. Eu senti a coragem ressonando em minha alma, afinal, não é sempre que, literalmente, não vemos o chão sob nossos pés.
Chamonix – França
De Chamonix, seguimos para a Alemanha, com a intenção de visitar Fussen, a partir de Munique. Fussen tem castelos que inspiraram Walt Disney. Em Fussen, me senti a própria Cinderela, e podem rir à vontade, pois não há como não memorar os contos de fada da infância e vivenciá-los. A sensação foi de puro acalento e acolhimento à criança adormecida. Nesse momento, a alma se aquietou, a paisagem surreal, nos fazia perceber o quanto ainda temos a aprender sobre o mundo e suas maravilhas. Era preciso silenciar em respeito a toda aquela magnitude.
Por questões geográficas, seguimos para a Áustria e República Tcheca para, depois, retornamos às cidades alemãs de Berlin e Hamburgo, a primeira repleta de histórias marcantes da Segunda Guerra Mundial e a segunda um espetáculo em termos de arquitetura, adorei Hamburgo!
Já em solo Austríaco, eu e Lenita passamos o Réveillon às margens do rio que cruza a charmosa e medieval Salzburg, onde o filme a Noviça Rebelde foi rodado. Apreciamos, ainda, um concerto com as obras musicais de Mozart durante um delicioso jantar, alimento musical para a alma e sensorial para o paladar. Mas o maior desejo em terras austríacas era o de conhecer a pequena vila de Hallstatt, nos Alpes, e seguimos viagem. Após a estação ferroviária de Ebensee, surgiu uma visão surreal de montanhas de rocha negra cobertas por neve, refletindo seu esplendor sobre um lago de águas, indescritivelmente, transparentes. No momento em que desci do trem, minha respiração pausou, não conseguia entender o que meus olhos estavam vendo! Mas meu coração acelerado pelo arrastar da bagagem, clamava por ar. E, como que num suspiro, inalei o ar mais puro, que já respirara. Sentia que a cada inspiração, meu corpo renovasse suas células, quase uma “oxigenoterapia”, figurativamente falando. Após dois dias de higiene mental nesse paraíso, seguimos para capital austríaca.
Viena dispõe de belas construções e um estilo de vida mais cosmopolita. Lá aprendi muito culturalmente e meus olhos, ao apreciar a obra “O Beijo” de Gustav Klimt, no Museu Belvedere, despertaram a alma para a importância das manifestações de amor. Então, constatei que amor, em sua essência, não é palavra, mas atitude. E como se não bastasse ver, precisei ouvir, em forma de espetáculo musical na Ópera de Viena, todo amor de um homem a uma mulher no espetáculo Il Puritani.
De Viena seguimos à Praga, na República Tcheca. Praga é belíssima! O povo é descontraído e a vida noturna agitada. A vibração da cidade elevou mina alegria à décima potência, pura diversão. E a alma reviveu a adolescência, suas dores e sabores.
De volta à Alemanha, visitamos Berlin e Hamburgo, essa última me encantou pela educação de seu povo. E como havia muito gelo pela frente ainda, seguimos para Copenhague, a capital da Dinamarca e cidade de um dos meus autores de contos infantis prediletos, Hans Christian Andersen. Quem não conhece A Pequena Sereia, O Patinho Feio, A Rainha da Neve e o Soldadinho de Chumbo? Nem preciso dizer que minha criança interior foi novamente contemplada. Surgiram as lembranças dos colegas de infância, dos momentos de leitura em casa e em sala de aula, ah como era bom deixar a imaginação fluir a cada história que ouvíamos na infância, não é mesmo? Aqui, foi a vez de a alma sentir o colo dos pais.
Praga – República Tcheca
Mas, como até os contos de fada chegam ao final, seguimos viagem rumo a Estocolmo, a maior cidade e capital da Suécia, onde a premiação Nobel acontece anualmente. Os canais que cruzam a cidade conferem certo ar romântico à cidade. Tudo perfeito! E, apesar de tantas emoções já sentidas até então, eu estava ansiosa por chegar a Noruega, pois sabia que a experiência que me aguardava seria transcendental e tinha nome: Aurora Borealis.
Sempre sonhei em presenciar a Aurora Boreal, repeti inúmeras vezes que não poderia partir deste mundo sem assistir ao fenômeno que me encantou quando li uma reportagem sobre o tema e, como uma ideia fixa, permaneceu em minha mente por décadas. Era chegada a hora de concretizar o grande sonho.
De Estocolmo, prosseguimos para Oslo, onde embarcamos num trem da década de 40, realizando a linha Myrdal-Flam. O trem encantador, revestido em veludo vermelho, com seu apito característico passando por cachoeiras congeladas e paisagens deslumbrantes reavivaram em minha memória e época de ouro da extração carbonífera de Criciúma e região. Lembrei-me da visita, com minha família, à tão famosa, à época, Dragline Marion em Siderópolis e dos trilhos que cruzavam a Avenida Centenário, foi um verdadeiro reencontro com o passado. E a alma agradeceu... Tios, avós, primos, irmãos, pais e mesmo os amigos que escolhemos para serem da família, certamente a vida não teria a mesma graça sem as algazarras e confusões familiares. Se não fossem eles, com quem compartilharíamos nossas histórias? E, ponderando bem, a família constitui a plateia do espetáculo da vida.
Ao chegarmos em Flam, uma pitoresca vila, embarcamos em um moderno Ferry Boat para atravessar os vales em meio aos fiordes Noruegueses. Os turistas em êxtase cantarolavam o tema do Titanic, num misto de sensações entre liberdade e poder, afinal visitar os fiordes em pleno inverno não é uma aventura para muitos. Em meio aos fiordes, a alma experimentou o silencio absoluto, a ausência de pensamentos e, sobretudo, a paz. Sim, o silencia acalma a alma, fato!
Aportamos em Bergem e voamos rumo à Tromso, uma das mecas mundiais de avistamento das luzes do norte. Pelo caminho, a uma distância razoável pequena do solo já que o avião era um bimotor, observávamos a degradação da calota polar norte do planeta Terra. O comandante nos explicava que, apesar de ser o auge do inverno, a neve era visivelmente escassa sobre as ilhas no percurso, e os ursos polares, cuja imagem conhecida é de um animal muito alvo e gordo, já não corresponde à realidade. Hoje, são magros e sujos de terra. Nesse momento a alma gritou e, dessa vez, de dor.
O sentimento de impotência, diante da ignorância humana que destrói o próprio ambiente que habita, se tornou uma lança rasgando a esperança de um planeta no qual as diversas espécies possam viver em harmonia, agonizei em angústia e tristeza.
Mas, como o objetivo principal da viagem estava mais perto, o coração foi tomado pela expectativa de conhecer a rainha dançante do norte.
A Aurora Boreal, ou polar ártica, é um fenômeno óptico provocado pelos ventos oriundos das explosões solares que atingem a terra cerca de três dias após seu acontecimento e o impacto das partículas com a atmosfera terrestre, canalizada por campos magnéticos, gera um espetáculo visual indescritível de luzes, predominantemente verdes, mas que podem variar em tons de rosa, lilás e até mesmo azul, serpenteando pelo céu.
Mas avistar o fenômeno não é tarefa fácil, é preciso estar no lugar certo e na hora certa, ou seja, no circulo polar ártico e auge do inverno, quando o céu é mais escuro.
Os meses de maior incidência das luzes do norte são setembro, outubro, fevereiro e março. A lua deve ser nova ou crescente, o céu deve estar limpo, sem nuvens, e é preciso, ainda, se afastar das luzes da cidade. Mesmo assim, a dançarina da noite é caprichosa e aparece quando bem entende.
Os aplicativos de verificação de atividade, como o Northern Lights Forecast, podem até indicar ótimas possibilidades de encontrá-la, mas as tentativas podem ser frustradas. Bem, a aposta era a de que em cinco noites de permanência em Tromso, ela apareceria para nós.
Tromso – Noruega
Já na chegada, fomos comunicadas de que os turistas que haviam tentado apreciá-la na época do Natal, não ganharam esse presente de papai Noel e voltaram para suas casas decepcionados. A ansiedade aumentou, pois estávamos no final de janeiro, no início da lua crescente e com algumas nuvens no céu. Mesmo assim, partimos já na primeira noite, para caçá-la e é por isso que os turistas são chamados de aurora chasers.
E como, sabidamente, a realidade se manifesta por meio dos pensamentos e sentimentos, o desejo se concretizou. Por seis horas ininterruptas, observamos as luzes do norte dançando sobre nós. Nessa noite, minha alma foi nutrida e minha fé reavivada. Tive a certeza de que sonhos podem mesmo se tornar realidade.
Outro dia amanheceu e com ele uma nova oportunidade de encontrar a dama da noite e, quando o relógio marcou 18 horas, já estávamos saindo pelas estradas para encontrar um local cujo céu se apresentasse com menor quantidade de nuvens possível. E, após três horas de estrada, ela apareceu novamente, a princípio tímida. Fizemos uma fogueira e por muito tempo conversamos com os quase 20 turistas, de todas as partes do mundo, que compartilhavam conosco esse mesmo sonho, quando, então, fomos surpreendidos por uma atividade extremamente intensa!
Gritos, urros, risadas, choros, abraços e pulos faziam parte daquele momento mágico, iluminado por luzes verdes muito fortes que serpenteavam de um lado para o outro, num ângulo de 180 graus, sobre nossas cabeças!
Naquele instante, a união tomou conta dos corações, éramos apenas um e, então, a alma falou novamente: Sim, somos todos um! Uma só terra, uma só família, uma só vida entrelaçada por uma teia em que diferentes seres podem coexistir. Sim, todos nós estamos em busca de afeto, de amor verdadeiro, e devemos estar em comunhão com a natureza, com a família e com a própria consciência! É disso que se trata a vida!
Mais tarde, soubemos que havíamos presenciado a segunda maior atividade da Aurora Boreal nos últimos quatro anos! Que presente da vida!
E como a persistência aprimora a técnica, na terceira noite conseguimos avistar a Aurora novamente. Cada experiência com seu encanto, dessa vez a beira do mar, com as luzes promovendo reflexos espelhados. Missão Aurora, cumprida na lista dos desejos da vida!
E para completar essa viagem, que teve o efeito de inúmeras sessões de terapia sobre minha existência humana, tamanha a evolução emocional que alcancei, voamos para o arquipélago de Lofoten, a cereja do bolo dessa jornada entusiasmante.
Lofoten é simplesmente apaixonante! Não somente por suas incontáveis ilhas em forma de montanhas pontiagudas interligadas por pontes curvas e por suas casas de madeira, invariavelmente pintadas de vermelho ou de amarelo representando a companhia de pesca ao qual está engajado o trabalhador, mas, sobretudo, por sua singeleza.
Lofoten - Noruega
A cada vilarejo percorrido percebia o quanto a simplicidade torna a vida mais bela. Nesse lugar, minha alma me disse que, na verdade, insistimos em acreditar que precisamos “ter” para sermos felizes quando, na verdade a felicidade consiste, justamente, em “ser” e em “estar”.
Explico: “estar” em Lofoten me fez compreender que não precisamos de bens materiais para nos sentirmos completos. Que temos capacidade para sermos o que quisermos “ser”. É simples, está tudo em nossa mente, em nosso coração, em nossa alma e em nossa força de vontade, compilados numa única palavra: amor!
Quando compreendemos o poder do amor, poderemos ser suficientemente humildes a ponto de assumir nossa ignorância e descaso frente à magnitude da natureza, poderemos ser bravamente corajosos para enfrentarmos a arrogância que cega nossos olhos diante às oportunidades de se avantajar sobre tudo e todos, poderemos ser justos de forma a ouvir antes de julgar, de refletir antes de agir e de compartilhar ao invés de guardar somente para si. Acredito que seja isso que a alma intente dizer que é se estar em paz, se estar feliz.
A lição principal que a alma deixou? A de que nós, seres humanos, estaremos aptos a vivenciar uma das mais magníficas experiências da vida quando pudermos compreender o verdadeiro sentido da palavra amor, e digo que não é a de presenciar a Aurora Boreal, mas a de construir uma família feita de amor. Ao menos, foi isso que minha alma me falou...
Texto: Lisiane Fabris